Hoje de tarde dei por mim a ver um vídeo de um humorista/apresentador brasileiro. Fábio Porchat se não me engano, sinceramente não lembro bem porque fiquei mais preso ao que ele disse, de forma tão elementar e sincera que não pude deixar de comentar. Ele foi quase rude e com toda a certeza, politicamente incorreto. O meu comentário foi elementar também mas, como quase sempre, o meu lado “politicamente-inssurreto” veio ao de cima. Ele disse algo nas linhas de, mesmo sendo contra o aborto, quer que as mulheres tenham o direito de escolher, pois ele conheceu uma rapariga/mulher que teve um caso com um desses homens poderosos e de alto perfil, figura pública. Ela engravidou e ele “pediu” (leia-se, manipulou, chantageou, pressionou, ameaçou) para ela fazer o aborto numa dessas clínicas ilegais. Eu nem sabia mas muitas vezes, nessas clínicas, eles matam o feto e a mulher entra em hemorragia o que as obriga a ser atendidas num hospital. Ela foi, perguntaram se estava grávida, ela negou, mentiu para proteger quem não merecia e acabou por se sacrificar a ela própria para proteger um porco machista. Para lá da tristeza, para lá da raiva gélida que estes casos me fazem sentir, para lá das centelhas que se perderam para manter um cabrão numa posição que não merece, para lá disso tudo que todos sentimos e sabemos ser verdade (que a escolha é da mulher e a cruz é dela para carregar também, seja o que for que decida), uma ideia ficou comigo.
Apercebi-me do porquê de tantos líderes, políticos, religiosos, defensores da moral e dos bons costumes, estarem sempre a tentar penalizar o aborto, penalizando as mulheres e as supostas vidas que tanto juram querer defender. O relâmpago mental que me atingiu foi de tal forma ofuscante que o comentário que fiz ao vídeo mal roçou na verdade universal com que fui assaltado dentro da minha cabeça. Estes gajos arranjaram uma boa maneira de continuarem estas práticas machistas, porcas, fruto de luxúria pecaminosa e não da que vem com amor verdadeiro. Já explico.
Em Portugal a lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (referida daqui para a frente como IVG) foi criada em 2007 e no seu primeiro ano, se não estou em erro, o número de abortos caiu, drasticamente, uns 7%. Somos, neste momento, o país europeu com menos abortos. (fonte: https://www.publico.pt/2017/09/14/sociedade/noticia/portugal-e-pais-europeu-com-menos-abortos-lei-foi-um-sucesso-diz-francisco-george-1785386)
O porquê da súbita e contínua queda desse número é fácil de explicar. Cada mulher que “escolhe” fazer a IVG tem de passar por um rigoroso exame psicológico e físico para se tentar minimizar o impacto que uma coisa dessas sempre tem na mulher e talvez até nos seus entes queridos. Muitas acabam por escolher prosseguir com a gravidez pois deixam de se sentir isoladas mesmo até, e se calhar principalmente, quando a gravidez é fruto de sexo sem consentimento. Falo de violações e abusos e toda essa violência que me enoja pois transforma o mais belo ato de amor entre duas pessoas em algo vil, sujo, até sangrento. Não quero ir por aí. O que importa aqui é que vidas são salvas, centelhas brilham em vez de serem extinguidas sem ninguém pestanejar (eu sou uma excepção, pois acho que todos nós temos propósito aqui – falo por mim mas espero não estar sozinho nisto). E nesta queda, que tem acontecido um pouco por todo o lado em que a IVG foi implantada, é que reside o problema desses tais líderes.
Até 2007, aqui em Portugal não faltaram abortos a serem realizados, são famosas e numerosas as histórias de viagens repentinas a Espanha para clínicas ilegais que por lá abundam (pelos vistos, segundo dizem). Desses que foram realizados com sucesso não se sabe muito, as mulheres escondem a vergonha melhor do que um mísero anfitrião esconde a comida dos seus convidados. Vivem com a culpa e com os danos (físicos e emocionais) para o resto das suas vidas. Dos que correram mal, algumas histórias se conhecem pois não é tão fácil quando a vergonha se soma à tragédia, esconder tudo durante muito tempo. Mas não é disso que vou falar também, isso é sobejamente conhecido, infelizmente. O que importa aqui são as mulheres e elas já esqueceram mais sobre isto do que eu alguma vez irei saber. Resumindo, com lei ou sem lei da IVG todos sabemos que os abortos ocorreram, ocorrem e continuarão a acontecer, principalmente nas classes altas ou financiados por pessoas dessa classe (que não têm classe nenhuma, né?).
Então porquê manter a ilegalidade? O que se ganha com isto? Eu disse que ia explicar e fica aqui registada a minha ideia. Porque, para essas mesmas classes é melhor assim. Imaginem um magnata, um político, um líder de uma seita religiosa. Pregam altas morais, bons costumes, demonizam o sexo (pois a ideia deles disso nunca é ato de magia, apenas de poder e controlo sobre a outra pessoa e como tal, é pecado) mas no fundo a maioria deles são os piores pervertidos, imorais e alguns são mesmo predadores sexuais. Um deles engravida uma pobre coitada que caiu no célebre “conto do vigário”, na conversa porca e machista e eivada de mentiras só para a levar para a cama (este tipo de conversa enoja-me, mas, muitas vezes resulta). Todos nós conhecemos as histórias: “eu vou deixar a minha mulher é só esperar que (inserir mentira aqui)”; E “isto é tudo em nome de (inserir divindidade aqui)”; e etc.; Mais uma vez, a quem isto diz respeito, sabe mais sobre estas mentiras do que eu sei sobre os meus dedos e tenho-os desde que nasci. Ao manterem a IVG nas trevas podem exercer poder e controlo sobre as suas vítimas (se alguma de vocês se sente amada estando com um homem destes, lamento informr mas só um pequeno número dessas histórias de “amor” terminam bem). Jogar no Euromilhões tem melhores chances. Fica a dica, procurem os solteiros, eles “andem” aí, cheios de amor, admiração e respeito pelas mulheres, mas são muito tímidos, mal sabem falar com uma de vocês. Esses cagões que vos mentem para vos tirarem a cuequinha, sabem bem como vos dar a volta, desconfiem. Passando à frente. Ao exercer esse controlo e mantendo os direitos das mulheres na Idade das Trevas o resultado é sempre mais agradável do que uma IVG segura e apoiada pela classe médica. Vejamos. Uma mulher vai fazer o aborto ilegal. Não conta com a família, apenas com uma eventual melhor amiga, a mãe, uma irmã, se tiver sorte. Está sozinha a tomar a mais importante decisão da vida dela com repercussões para o resto da sua vida, pressionada pelos mais imponentes e assustadores machos alfa que este mundo já viu. Estão reunidas as condições para uma decisão acertada, não estão? Mas daqui para a frente fica pior. Ela decide avançar com o procedimento (leia-se acto sangrento e desinformado, feito nas piores condições imagináveis, cenário de filme de terror). Correu bem? O porco machista livrou-se das provas da sua imoralidade, a mulher muito provavelmente perde todas as noções do seu valor e ele pode descartá-la como se fosse uma fralda usada. Correu mal? A mulher ficou muito mal? Que se foda, as provas estão eliminadas e ainda mais fácil fica descartar a mulher e passar para a próxima. Afinal ela fez o aborto porque queria, ninguém a obrigou. A mulher morreu? Ouro sobre azul para o porco pervertido, livrou-se das provas e da testemunha. Não há herdeiros, nem acordos parentais nem nada. Muito provavelmente denuncia a clínica ilegal, não paga a conta e ainda é o herói nos noticiários e jornais. Assustador? Sim, mas não acaba aqui. Isto é para sexo consentido. Imaginem quando a gravidez é fruto de uma violação, assédio consumado, chantagem, etc. Conseguem? Eu espero enquanto vão vomitar.
Mesmo as mulheres desses líderes muitas vezes são contra a IVG. Isso já fica mais difícil de explicar? Talvez não. Uma mulher dessas descobre que as infidelidades do seu estimado marido, que lhe proporciona tão bela vida, lhe podem arruinar esse estilo de vida. Quase nem existe ambiguidade. A “outra” é uma puta, uma porca, que lhe conspurcou o lar e a vida, é um ser desprezível. Já a pessoa que carrega o livro de cheques e lhe passa os cartões de crédito para a mão é um santo, que foi seduzido por uma vaca que quer é a fortuna dele e sentir-se importante. Puta de merda, que desviou o belo marido do caminho correcto. Ricos valores não é? Mas não podemos escamotear o assunto, pois todos nós conhecemos as histórias e as mulheres mais conhecem ainda, algumas até as viveram. Talvez a vizinha do 3º Esquerdo, que vocês acham demasiado amarga para a idade que tem. Ou a colega que nalguns dias nem consegue trabalhar e têm vocês de fazer o trabalho dela(s). Até mesmo a patroa fria que mal suportam e o pretensioso marido dela já estiveram envolvidos numa coisa do género. Dá que pensar? Dá, mas não acaba aqui.
Por onde quer que se olhe, uma mulher que escolhe fazer um aborto é sempre julgada, sendo que, já tem a culpa formada à partida. Até mesmo em casos de violação. “Ela estava a pedi-las, sempre de vestido e minissaia”. Se quando são, de forma tão evidente, vítimas, podem imaginar como é quando o sexo é consentido. “Ela sabia no que se estava a meter”. Não, não sabia porque o que a levou lá foi uma quantidade de patranhas desenhadas para a levar a ceder controlo. Já foram muito testadas e sempre deram frutos. Porquê mexer em algo que funciona tão bem? Isto está tão enraizado que apenas uma lei de IVG pôde sequer fazer mossa (ainda que pequena) no tecido de uma sociedade retrograda, machista e vazia de humanidade. Temos de mudar o paradigma se queremos efectuar mudança na nossa sociedade e ter progresso. O corpo de uma mulher a ela pertence e tirar esse controlo é convidar violência e tragédia em quantidades massivas para o nosso dia-a-dia. Uma Lei de IVG é apenas o primeiro passo para uma sociedade com menos violência sobre as mulheres, com igualdade mas acima de tudo com humanidade e amor. Portugal deu o primeiro importante passo.
E vocês? Querem ficar para trás?